Para pensar a desgraça na beleza – Victor Brunetti
A exposição Intempéries – o Fim do Tempo, na OCA do parque Ibirapuera, coloca em pauta a questão do tempo tornando-se clima, perdendo sua poesia. Mas o que chama a atenção, de fato, é perceber que em cada vídeoinstalação há uma poética, algo além do puro sentido, para apresentar desgraças no mundo. É deslumbrante assistir o descer do magma pelas montanhas, perceber sua textura, seu calor, seu movimento, sua vida, mas ao mesmo tempo, é aterrorizador pensar o potencial de destruição deste elemento da natureza.
A exposição intercala, em cada obra, um pouco do efeito natural e um pouco do efeito cultural. Natural no sentido de que as intempéries sempre existiram, independentemente do homem agindo ou não. Cultural no sentido de que, com toda esta temática ambiental que sufoca os habitantes do século XXI, cada um consegue enxergar um pedaço de culpa nas obras. No mínimo, culpa de agravar a situação. Por mais que muitas vezes pareça que não temos tanta influência, e que uma ação pequena não traz conseqüências grandes, as vídeoinstalações colocam tão perto o objeto que o espectador sente-se responsável. Creio que, no geral, este era o objetivo dos 28 artistas que compõe a exposição.
Vale ressaltar o horror que é a sensação dúbia de enxergar na mais bela poesia, no mais belo movimento da natureza, desgraças. Pasmar nas obras, apreciar cores, elementos, situações, coloca o expectador com uma sensação de iconofilia. Porém, ao desligar um pouco os sentidos e dar espaço ao pensamento, entendem-se, pela contradição sentido/pensamento, as desgraças.
Os artistas reforçam novamente o papel social que possuem: expor à população a situação em questão. E de um modo muito mais forte que qualquer cientista conseguiria explicar. Colocar a ilusão sensível em xeque com o pensamento, de forma completamente platônica, cria-se um sentimento muito forte sobre a situação: achar que é algo, quando, na verdade, é o seu oposto. Mais uma vez, os artistas expõem a desgraça disfarçada de poesia estética.
Auto-mutilação – Valérie Mesquita
“Antigamente, o tempo era simplesmente tempo. Era como uma segunda pele para as pessoas, e, apesar de suas ocasionais inclemências, fazia com que nos sentíssemos parte de algo maior na natureza. Mas, agora, o tempo chegou ao fim e transformou-se em clima, uma entidade física, anônima e amedrontadora que, a qualquer momento, é capaz de deflagrar uma catástrofe” (Alfons Hug).
E a catástrofe está prestes a acontecer. O tempo tornou-se clima, mas o tempo do relógio continua tempo, e continua a nos perseguir. A intempérie não é nada mais que a resposta do tempo à usurpação humana da Terra, à prepotência do homem diante da natureza: o tempo-relógio está cada vez mais curto, correndo em nossa direção, esmagando-nos contra o que nós mesmos causamos, apontando nossa culpa. Culpa que nos faz ver o tempo como clima, algo amedrontador. O opressor teme o oprimido.
Consumimos a natureza como se ela fosse algo colocado ao nosso inteiro dispor, como se estivesse aqui simplesmente para ser usada como combustível humano. Consumimos a Terra, consumimos o tempo da Terra. Nos despimos de nossa segunda pele. E depois nos perguntamos cinicamente o que está acontecendo. Sabemos muito bem que o que está acontecendo somos nós, nós e nossa urgência por mais: mais Terra, mais tempo – este que, paradoxalmente, insistimos em diminuir.
Mas a natureza não pode ser domada. No fundo sabemos disso e, mesmo cientes de que ela prepara sua vingança, continuamos a encontrar novos meios de subjugá-la, temerosos e, ao mesmo tempo, negligentes e intocáveis: o ser humano sempre encontrará um meio de sobreviver, sua inteligência privilegiada assim lhe permite. Mas chegará uma hora em que perceberemos que essa inteligência de nada nos vale, pois a violência é contra nós mesmos: por mais que insistamos em negar, fazemos parte da natureza. Talvez sobrevivamos, mas estaremos mutilados. Invalidaremos nossa casa e invalidaremos a nós mesmos.
Ster mit Ausblick, de Michael Sailstorfer, mostra, entre o amanhecer e o anoitecer, uma casa de madeira sendo desconstruída, até restar apenas um fogo crepitando em uma lareira de metal escuro. Nada poderia ser mais claro. Logo ao lado, está Secret Life, de Reynold Reynolds, que pode ser entendido como um desdobramento do primeiro. Absolutamente lírico, é, ao mesmo tempo, absolutamente devastador. A câmera descreve o movimento ritmado, incessante e circular de um relógio. Este movimento acompanha uma mulher – que nunca pisca os olhos – por cômodos forrados de plantas. Ela dorme, toma banho, chora. E come. O modo como come as frutas que estão ao seu redor é quase obsceno em sua voracidade de consumir o máximo que pode, no menor tempo possível. E sangra. Enquanto corta legumes, corta também seu dedo, sangrando em cima da comida e das plantas – ela e o que a cerca são a mesma coisa. Ela, então, debate-se, luta contra si mesma, em cima daquilo que ela está consumido. No entanto, a mulher não é a protagonista de Secret Life. Todos somos.
Ao mesmo tempo que obras como estas apontam para o homem, outras como Origin, de Andrej Zdravic – onde um vulcão em erupção é filmado em toda sua magnitude – mostram a força em potencial que tem a natureza para realizar sua vingança, e outras, como Stromness, de Simon Faithfull, mostram um mundo pós-vingança, onde o que era domínio humano volta a ser domínio da Terra.
A exposição atinge excepcionalmente seus objetivos. Ela revela a ânsia de dominação humana. Revela o poder da natureza sobre o homem. Revela o medo que sente do tempo, tornado clima. Revela sua culpa por tê-lo tornado assim. E, mais importante de tudo, nos coloca exatamente no lugar deste homem destruidor, amedrontado e culpado – local do qual tendemos a tentar nos distanciar: o culpado é sempre “o homem”, nunca “eu”. A exposição nos coloca no lugar do eu.
Maria Celina Gil
Ouvir nos noticiários e ler nas revistas que o mundo está sofrendo devido à ações do homem se tornou tão cotidiano para nós que sinto que já nem damos mais ao assunto a importância que ele merece. Ao entrar na exposição “Intempéries – o Fim do Tempo”, porém, é como se recuperássemos aquele primeiro sentimento, quando ouvimos uma repórter dizer, em tom catastrófico, uma lista de conseqüências à natureza de nossos atos. Nada de pessoas correndo de um lado para o outro porque uma onda gigante vai invadir a cidade; nada de gritos, desespero e orações. As obras da exposição mostram a natureza e o homem de forma tão harmônica dentro da desarmonia que criamos, que passa a sensação de que ajudar a destruir o meio ambiente é como amputar o próprio braço.
Para nós, acostumados com as imagens rápidas, vídeo-clipe, é curioso entrar em uma exposição que pede muita calma e reflexão. É preciso parar na frente de cada vídeo e assisti-lo por inteiro para compreender a dimensão do trabalho. E é talvez justamente aí que more um dos maiores atrativos da exposição. O desconforto não é proveniente do tédio, da monotonia; mas sim da sensação inevitável de culpa sobre o que se vê.
A exposição reflete sobre o fato de termos associado a palavra “tempo” diretamente com o “clima”. Tempo é algo tão abstrato que, se comparado somente com o clima, concreto, que sentimos na pele, ganha uma dimensão até simplista. Pior ainda, por sermos assombrados hoje por um desespero tão grande diante de um possível “apocalipse ambiental”, reservamos o tempo, que pertence a todos e a tudo, a pesquisas científicas e folhetos de instituições não governamentais nos ensinando a “salvar o mundo”. Trocamos as lâmpadas de nossas casas por umas que gastem menos energia e ficamos esperando o dia em que um grupo de cientistas nos dirá, com certeza de resultados positivos, como reverter os problemas do meio ambiente. Parece que sentimos o problema, mas terceirizamos a solução.
Apesar da mensagem apocalíptica das obras, não saí de lá com a sensação de que não há nada a ser feito. Pelo contrário, senti que ainda podemos perceber o mal que fazemos a nós mesmos e que, realmente, o tempo ainda está vivo.
Fernanda Velho
Um relógio se relaciona com o tempo e com a sua passagem, sua mudança. Um termômetro também diz respeito ao tempo, mas a sua temperatura, o clima. O problema que o homem enfrenta atualmente tem relação com este segundo tempo, trazendo conseqüências ao primeiro. Contudo, a sua causa inicial não é o tempo em si, mas o próprio homem.
Cada vez mais próximos estamos do que seria o Fim do Mundo, quando a Natureza teria finalmente sua vingança sobre aqueles que tão inconseqüentemente a destroem. Entretanto, ainda que muitos sejam os avisos - tanto de ambientalistas quanto da própria natureza - o homem, frente à imensidão do planeta, perde consciência de sua finitude, e não lhe parece normal e aceitável, por mais que muito lhe seja dito sobre o contrário, que um dia tudo aquilo acabe. É então que, diante de tantos dados e estatísticas sobre os resultados catastróficos deste abuso humano perante o meio ambiente, o tempo passou a ser visto não mais como um cronômetro de contagem regressiva que aponta para o “fim dos tempos”, mas apenas como clima, fenômeno bem mais previsível e concreto, além de reservar o tema a especialistas.
A exposição da OCA, Intempéries – o Fim do Tempo, fala exatamente sobre esta mudança de sentido da palavra “tempo”, como causa direta desta falta de conscientização e descaso. O trabalho destes artistas tenta tratar o assunto de uma forma diferente, com a intenção de provocar um sentimento de preocupação através de uma apresentação inusitada da natureza. Em vídeos que mostram seu poder, seja por um vulcão, seja por um eclipse, o espectador tanto aprecia quanto a teme. Em contraponto a estes, outros vídeos mostram a ação nociva do homem, que se considera arrogantemente superior a ela. Entretanto, o espectador deixa a exposição com a imagem de uma natureza não fraca e vulnerável, mas forte e atraente, de forma que se torna, a partir de então, impossível ignorá-la.
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